Texto por Margareth Maria Demarchi e Samara Corrêa

[Atenção: Análise com Spoilers]

            Para nos chamarmos de heróis ou de vilões de nossas próprias vidas precisamos fazer reflexões sobre vários momentos vividos, e o filme A vida em si (2018), do diretor e roteirista Dan Fogelman nos dá uma mãozinha para realizarmos algumas destas reflexões.

            O que a princípio seria apenas a história de um casal nova iorquino que se apaixona na universidade, casam-se e se preparam para a chegada de sua primeira filha; acompanhada da história de outro casal, este espanhol, que têm suas trajetórias ligadas por um trágico acidente, o filme nos leva a várias possibilidades de reflexões sobre a vida…  a dor…  o julgamento…

            Abby, a protagonista do casal nova iorquino (vivenciada pela atriz Olivia Wilde), nos incentiva a refletir sobre quando uma intensa dor permanece em nossas vidas. Ela perdeu os pais em um acidente de automóvel quando criança, cresceu levando consigo esta dor e as consequências por ela desencadeada.

            E nós percebemos a nossa dor “guardada”?

            Como identificá-la?

            Quando esta dor é maior que o próprio amor pela vida, a dor toma a vida como meta. E se escolhermos reviver essa dor na vida, passa a existir o julgamento e a culpa.

            Na história de Abby seu destino foi o mesmo que de seus pais. A dor foi sentida como separação, não foi compreendida pela mesma, e está a revive quando se vê grávida de uma menina.

            Porém se trouxermos para a nossa realidade, o olhar para a vivência da dor, como um destino de quem viveu, a pessoa pode querer fazer algo diferente que transforme a dor em ação positiva, de forma a viver a realização em um sentido próprio, que alcance o amor, acima da dor. Como nos ensina o psiquiatra suíço Carl G. Jung, “Eu não sou o que acontece comigo, eu sou o que eu escolhi me tornar.” Exemplos desta ideia, é a filha de Abby, Dylan (vivida pela atriz Olivia Cooke), já jovem, que comemora seu aniversário cantando, ou melhor dizendo, gritando, extravasando toda sua raiva na única ‘música de amor’ do álbum que sua mãe mais gostava do cantor Bob Dylan (de onde seu nome foi inspirado); outro exemplo da forma de transpor a dor, é a passagem do tempo na vida de Rodrigo (vivido por Àlex Monner), que é mostrada com ele sempre correndo entre os olivais. Para nos conciliarmos com a dor precisamos saber que não perdemos, mas que continuamos a viver.

            Já Will (vivido pelo ator Oscar Isaac), era intenso e sentimental, e não tinha a experiencia da perda, infelizmente. Will se viu apenas na vida da esposa e não encontrou o seu próprio sentido de vida.

            A dra. Cait (Annette Bening) o incentiva a olhar para esta dor, que é tão imensa, que a princípio ele tenta mascará-la, inventando histórias que pudessem substituir a realidade. E quantas fotos e/ou vídeos não vemos nas redes sociais, que também tentam mascarar a intensa dor da realidade que vivemos?

            Estamos dispostos a assumir a responsabilidade da nossa ação na vida?

            Só estaremos dispostos a viver, se estivermos dispostos a morrer a cada milésimo de segundo, porque esse milésimo já virou passado. No passado nada há para fazer, mas no agora sempre há – sendo que nunca somos os mesmos a cada instante, mesmo querendo assumir que somos.

            Mas a dor com suas várias facetas nos mostra outras possibilidades entre os personagens do núcleo espanhol. O ‘tio’ Vincent Saccione (vivido por Antonio Banderas), excluiu seu pai de sua vida (uma maneira enganosa de transpor a dor). Tomando o lugar do Pai, vive com sua mãe, passa a viver a vida dela como sua e deixa assim de experimentar sua própria vida, não constituindo família. Quando este se depara com uma família que ele considera “perfeita”, por ser o ideal que ele deixou de vivenciar, se encanta e a quer para si. Neste momento ele se sente atraído pelo filho do casal, revisitando sua relação com seu pai. O menino para ele representa seus próprios sentimentos enquanto criança, e este faz pelo menino Rodrigo o que ele sentiu que seu pai não fez por ele, e desta maneira a vida segue adiante pelo amor. 

            Javier Gonzalez (vivido por Sergio Peris-Mencheta), o pai do menino, percebeu a influência que Vicent causava em seu filho, de forma a interferir no meio de vida que ele lhe daria. Sua relação com o filho passa a enfraquecer, quando se percebeu sem estrutura para lidar com as situações das quais não vivenciou. Perdeu seus princípios de ser um homem de uma palavra só, uma vez que já havia assumido a honra e o valor que recebera do seu pai. A dor foi desencadeada por ter que pedir ao patrão para bancar o tratamento psicológico do filho. Se sentiu inadequado a situação, por não conseguir ser a base para o filho. Este necessitou de amparo profissional, que Javier não pode pagar e tentando se destruir, tendo em vista a dor, se entrega à bebida alcóolica. A mãe conseguiu se adaptar a situação, porém o pai, que tinha um ideal do que era ser pai, por conta da representação de seu próprio pai, não teve esta maleabilidade para ‘sanar’ sua dor e decidiu deixar sua mulher e seu filho.

            A mãe, Isabel Gonzalez (Laia Costa), ‘escolheu’ o marido por sua integridade, seus princípios éticos e valores, casaram-se e viveram felizes ‘quase para sempre’, pois quando seu filho começou a crescer, o patrão começou a ter mais contato, e a se incluir na família. Ela não se deslumbrou com os bens materiais, que o patrão poderia lhe oferecer, mas ele conquista seu filho, com presentes e com uma possível viagem para Nova York.  Javier então decide proporcionar a tal viagem a seu filho, no lugar de seu patrão. O menino então, volta perturbado desta viagem, pelo acidente que presenciou, quando ainda era pequeno. A influência de Vincent, sobre o relacionamento do casal, se intensifica, quando o mesmo é o responsável pela resolução da dificuldade financeira da família e Javier se sente diminuído, sendo aqui o dinheiro sinônimo de poder.

            Isabel se manteve fiel ao amor e ao filho, decidiu ficar com o filho e seguir no tratamento, pois teve um olhar totalmente sentimental para amparar a situação dele. Na grande maioria dos casos, a mulher, por ter este forte sentimento materno, deixa tudo e enfrenta a todos, quando o assunto são seus filhos. Ela, com a sabedoria de sua simplicidade, tem uma visão ampla, sobre o que significa a organização do amor na família, se propõe a continuidade da vida com a vida de seu filho, dizendo a ele, quando já muito doente e este partia novamente para Nova York: “Você já teve muitos altos e baixos na sua vida… e ainda terá outros. A vida é assim, é isso o que ela faz. A vida te derruba. Te joga lá no fundo do poço. Mas se você se reerguer e seguir em frente, se avançar só um pouquinho mais, você sempre encontrará o amor. Eu encontrei o amor em você. E a minha vida, minha história, continuará depois que eu me for. Porque eu continuo realizando a minha vida na sua realização. Siga sempre em frente que sempre estarei com você.  Então agora siga. Me dê uma vida linda. A vida mais linda de todas. Está bem? E se a vida nos derrubar, você vai nos reerguer. Você vai se levantar, seguir em frente, e encontrar o amor para nós…”

            No trecho seguinte do filme podemos visualizar o ápice da história familiar, em que Dylan, que não teve a mãe, depois de vivenciar intensamente sua dor, em pleno aniversário, procura o local onde sua mãe morreu (cena que reflete a dor de Dylan na busca por sua mãe). Naquele momento encontra Rodrigo, o rapaz que participou do acidente da mãe de Dylan. O destino traz os dois no ponto de origem, onde cada um tem uma parte na história. Depois de compreender a origem juntos, os dois percebem o motivo do vínculo, como uma forma de completar a realização dos pais, através da união deles como casal. Na vida que continua, Rodrigo tem a ternura da mãe e Dylan tem determinação do avô, que se compromete estar com ela até a sua juventude. Juntos vão aprender que tem que somar as forças que receberam – assim passam a vivenciar e evoluir a parte mais fragilizada.

            Revisitaram o passado, na origem, trabalharam esta origem olhando-a e ressignificando-a para que pudessem construir a partir de então. Há em ambos, a flexibilidade para mudança, por terem vivido intensamente as consequências de suas trajetórias.

            Nós estamos acostumados a não olhar para a origem dos principais acontecimentos de nossa vida, mas quando continuamos a pensar sobre esses acontecimentos (sendo que às vezes desconhecemos a verdade dos reais motivos das pessoas envolvidas), podemos passar a julgar, interpretar ou imaginar em nossa mente esses pensamentos, que podem se intensificar como verdade. Passamos a viver a vida sob a circunstância desta verdade criada, podendo até repetir a situação, como foi o caso de Abby, pois sua filha Dylan, repete a experiencia de ficar sem os pais.

            Esse tipo de situação é complexa por ser um drama difícil, mas podemos perceber no cotidiano de nossas vidas, qual tipo de “verdade” dos acontecimentos do passado está interferindo em nossa mente, como algo que pode acontecer no presente. Podemos lembrar de algumas situações corriqueiras, como:

            Homens podem pensar e/ou dizer: “- Não se deve confiar nas mulheres, são traiçoeiras.”

            Mulheres podem pensar e/ou dizer: “- Homens não nos compreendem, nunca conseguem entender nós, mulheres.”

            Quantos desses pensamentos acima são base dos relacionamentos de casais em conflito!

            Se a comunicação acontecer com a realidade e a honestidade de sentimentos (como acontece no filme: a conversa do patrão e o empregado; e a conversa do marido e da esposa), eliminaríamos o julgamento e a culpa, pois cada qual ficaria com o seu posicionamento, ajustado ao posicionamento do outro.

            No filme, o filho Rodrigo tem o mesmo comportamento do pai, demonstrando o respeito dele pela mãe, e não mostra também nenhuma fala contra o Pai. Rodrigo recebe bem o apoio do Tio, pois não há nenhuma demonstração de culpa em nenhum dos personagens.

            Existe um método terapêutico, chamado Terapia Familiar Sistêmica que auxilia na organização do amor na família, criada pelo alemão Bert Hellinger, e que trata de descobrir se no sistema familiar existe alguém que esteja envolvido sentimentalmente nos destinos dos antepassados da sua própria família. Isso pode ser percebido através do trabalho com Constelações Familiares. Tendo consciência desse envolvimento, a pessoa consegue se libertar mais facilmente dos problemas que eles geram.

            Essa é uma das aplicações da Constelação Familiar e que o filme trata de uma maneira bem evidente: as repetições dos comportamentos familiares de geração em geração. E o interessante é detalhar no filme, que o fato aconteceu há 4 gerações, e levou 3 gerações para que os descendentes tomassem consciência e finalmente deixassem os comportamentos familiares repetitivos.

            Bert Hellinger, diz por experiência, que os filhos são fiéis aos pais de origem, muitas vezes assim carregando comportamentos que não são deles. Desta forma temos que ter cuidado com a imagem que criamos dos pais, porque independente da situação que possa ter acontecido (sabendo agora o quanto é complicado julgar), são os pais que nos deram a vida e é isso que temos de mais precioso.

            Passando adiante, quem admira o herói e quem julga o vilão?

            Os heróis necessitam do vilão e o vilão necessita da vítima. Muitas vezes, nas situações da vida, apenas as pessoas envolvidas sabem da verdade, mas pode acontecer, às vezes, de existir “um segredo” entre as partes, em que o suposto vilão tinha pontos a favor, assim como o herói tinha pontos contrários a serem revistos. Isso é fácil de perceber quando se faz uma reflexão do quanto se julga sem a ‘posse da verdade’, apenas com suposições de julgamento interpretativo e imaginativo.

            Sabemos que a história da dor está ‘amadurecida’ com o resultado final do filme: o livro que a neta escreve contando toda esta bela trajetória de sua família. Neste momento ela estava demonstrando o quanto a história foi incluída nela mesma, o quanto a compreendeu e a integrou, estando assim melhor preparada para os conflitos. Quando há aceitação, sem querer controlar, há evolução.  E assim percebemos que não somos heróis, nem vítimas e nem vilões de nossas vidas, mas sim, somos colocados a prova de nossa ética e valor. Assim como temos a responsabilidade das consequências do que plantamos em nossa existência, sabendo que podemos fazer crescer, dar frutos,  existir e continuar ainda a reverberar sempre para o processo de evolução das vidas que existem e àquelas que ainda estão por vir.

            No filme os protagonistas tiveram um comportamento sem heroísmo, nem vitimismo e nem vilania. Viveram pelo sentimento verdadeiro, e se tornaram responsáveis pela tomada de decisão e ação em suas vidas.

            Afinal cada pessoa é, e sempre será, responsável pelas consequências previsíveis de seus pensamentos, atitudes, atos e comportamentos.

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Margareth Maria Demarchi e Samara Corrêa
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