[Atenção: Análise com Spoilers] – Para uma melhor experiência da sua leitura, ouça ao mesmo tempo, o PODCAST no fim desse texto.

Você não nasceu para ser rei, Loki. Você nasceu para causar dor, sofrimento e morte. É assim que é, é assim que foi, é assim que vai ser. Tudo para que outros possam atingir a melhor versão de si mesmo.” – Mobius – Série Loki.

            Diante de tudo que podemos observar em Loki, tanto do vilão como da figura da mitologia nórdica, nós do Herói que Existe em Nós afirmamos que Loki é uma figura positiva para nós. Ele está além do bem e do mal, e se firma na ideia de ‘transcender a dor’, pois usa as discórdias, as intempéries e as feridas como ferramentas para conseguirmos enxergar o tesouro por trás daquilo que conscientemente (ou inconscientemente), não queremos ver.

            Obviamente, antes da série, (que ainda não vemos um Loki se tornando um possível herói), vocês me diriam que o Loki claramente é um vilão! Não seria possível que Loki seja uma figura de transcendência positiva. E realmente vemos isso na fala de Mobius (Owen Wilson) que iniciamos esse texto, dizendo para Loki, que realmente ele é, sempre foi e sempre será, uma figura que causa dor, sofrimento e morte, para que outros possam atingir a melhor versão de si mesmo, mostrando-lhe ao mesmo tempo em seu ‘projetor do tempo’, os Vingadores se tornando as melhores versões de si mesmos, vencendo o “mal” do mundo – cena do primeiro filme dos Vingadores, em que Loki é derrotado. E mostra em outro momento que, enquanto o Deus da Mentira causa sofrimento nas pessoas, um sorriso no canto da sua boca aparece, pretendendo confirmar que o irmão de Thor sentia prazer em causar dor.

E como poderíamos dizer, então, que Loki, pode ser o agente que traz a melhor versão de nós mesmos se ele sabe o que é, se autodenomina o Deus da Trapaça e da Mentira, e ainda tem prazer no faz, claramente revelando seu lado maléfico? Teria esse lado maléfico uma tendência às causas boas?

Não estamos aqui explorando a série para dizer que todos aqueles que ainda se utilizam apenas de faces más ainda não exploraram suas faces boas, mas iremos um pouco mais além, explorando mitologias e arquétipos da nossa psicologia, para entendermos, pelo menos parcialmente, o aspecto transcendente do Deus da Trapaça. Trapaça, mentira, destruição em nós que desmoronam nossa zona de conforto e nos trazem diversas feições da dor, do sofrimento e da morte, mas pode ser símbolo, da transformação, do fogo purificador, da morte e do renascimento – subvertendo nossas concepções de que temos que sempre buscar o bom e o belo, pois também há transcendência nos aspectos sombrios, destruidores e que nos causam dor. Não à toa que há algumas teorias da mitologia que o conectam com o símbolo do fogo – o fogo que queima para transformar [como obviamente vemos na ciência, culinária e em tantos outros exemplos da natureza].

E podemos já começar explorando a Mitologia Nórdica, mais especificamente no Edda em Verso – uma coleção de poemas nórdicos preservados no Manuscrito Medieval Islandês Codex Régius, do século XIII, que contém a base das mitologias germânicas trazida pela tradição oral dos heróis e deuses que conhecemos hoje na forma mais popular por conta dos quadrinhos e da cultura pop. Como Thor, Odin, Loki, Frigg, Sif, entre tantos outros.

Edda em Verso, compilado este que, por ser da tradição oral, em que os contos eram passados de geração em geração, não podemos chegar aos seus autores, mas podemos entender, como nos elucida o psiquiatra Carl Gustav Jung, que todas as histórias que temos pelo mundo, não importando seu autor, são criadas por um ímpeto natural dos seres humanos de produzir histórias, e obviamente, são histórias que revelam muito sobre nós mesmos, pois antes de serem planejadas com algum propósito pelos seus respectivos autores, teriam de ter como referência a nossa própria natureza: nossos anseios, desejos, aspirações, inspirações, senso de pertencimento, medos, e busca pelo sentido da vida, além de é claro, muitas outras partes da nossa natureza.

Tudo aquilo que temos dentro de nós como seres humanos, é a referencia que temos para criarmos as histórias e mitos através do tempo, e não podia ser diferente. Portanto, qualquer história ou mito pode revelar muito sobre quem somos nós. É por isso que o psiquiatra Carl Gustav Jung, o mitologista Joseph Campbell, o filósofo da Grécia Antiga Aristóteles e muitos outros especialistas, sugerem que todos os personagens de uma mitologia condizem a uma pessoa só.

No poema mitológico Lokasenna – O Sarcasmo de Loki do Edda em Verso, um dos poemas que Loki aparece, o vemos como um agente da discussão entre os deuses. E se nos valermos das dicas dos pesquisadores, filósofos e sábios que vieram antes de nós, como descrevemos acima, Loki é face de nós mesmos como protagonista da história e todos os outros personagens são as nossas outras faces. Nossa face boa, nossa face traiçoeira, nossa face a favor da vida, nossa face mentirosa, nossa face divina, mas também nossa face vingativa e por aí vai…

Assim, o protagonista deus traiçoeiro e de pouca confiança, se infiltra em uma celebração dos deuses Aesir (Æsir – clã de deuses que residem em Asgard) somente para iniciar uma batalha de insultos. “A cada xingamento, um outro deus intervém para atacar Loki ou defender o insultado, virando ele então, o próximo alvo do deus das trapaças.”

A princípio, por não suportar os elogios que todos os presentes no banquete dirigiam aos servos de Ægir –  Fimafeng e Eldir, Loki mata Fimafeng. Talvez por conhecer que todos os deuses ali presentes continham pelo menos uma face sombria de si mesmo e não mereciam tamanha fartura. Fimafeng, o elfo belo e divino que tem alegria em servir, não poderia viver enquanto a face sombria de cada deus não fosse revelada.

Os deuses se revoltam contra Loki e o mesmo se enfurna nas sombras de uma floresta, ou se podermos arriscar, na face obscura de nós mesmos. Em outras palavras, Loki, ou por ora – a nossa face reveladora, se obscurece naquele nosso canto da mente ainda não explorado, por ser escorraçado por aquele nosso suposto lado bonzinho.

Mas imaginemos que cada face sombria em nós que não queremos enxergar e admitir, é como uma bola cheia de ar numa piscina que tentamos afundar para dentro da água para que ninguém a veja. Sim, uma piscina mesmo! Aqui é só uma referência para entendermos como tentamos esconder nossas imperfeições. Acontece que como temos várias faces “negativas”, e tentando segurar todas as bolas para que suspostamente, não passemos vergonha perante às outras pessoas, pois veriam que não somos tão bons como gostaríamos que as pessoas nos vissem, naturalmente, não conseguiríamos segurar todas essas bolas cheias de ar das nossas imperfeições, e elas “explodiriam” para fora da água, com a própria força da natureza. O mesmo se dá quando não conhecemos todos esses nossos lados supostamente negativos. Aquilo que tentamos colocar para “debaixo do tapete”, uma hora vem à tona e nos constrange inevitavelmente.

Loki, portanto, é parcialmente, o símbolo daquele que quer revelar o que propositalmente (e por vezes inconscientemente) não queremos entender em nós mesmos, e todos os nossos lados ditos “bonzinhos” (como os deuses) querem se livrar de Loki. Mas o Deus da Trapaça retorna para o banquete e quer seu lugar de direto! Simbolizando que todos as nossas faces devem ter lugar dentro de nós, para que não “explodam” inesperadamente em nós mesmos.

Para os deuses, ter Loki na mesa, seria o mesmo que admitir que nosso lado “sombrio” poderia viver lado a lado com nosso lado “bondoso”. Mas ninguém consegue sustentar essa imagem de “bondoso” por muito tempo, se ainda não conhecer todas as faces de si mesmo, “boa” e “ruim”, e dar lugar a elas! Aceitando-nos como nós somos, e conhecendo aquele nosso lado não tão positivo, que normalmente reprimimos, para que possamos finalmente entender o tesouro de tudo aquilo que ainda não exploramos em nós e aprendermos, verdadeiramente, como conviver melhor conosco mesmo.

Loki, enfim, começa a revelar que todos os deuses já fizeram algo que não consideramos dignos de elogios, insultando-os. Um após o outro denuncia cada ato dos deuses na mesa do banquete. Delatando o deus da música e da Poesia, Bragi; depois sua esposa Iduna, a deusa da Poesia e responsável pela imortalidade dos deuses. Deuses do Destino e do Amor, como Gefjon, e seus pais adotivos Odin e Frigg. Entre tantos outros como Freyja, Njördr, Týr, Freyr, Byggvir, o famoso Heimdallr, entre tantos outros. Revelando orgulho, traições, covardia, culpa, devassidão, predileções, privilégios, assassinatos, e por aí vai. E aos poucos todos vão sendo surpreendidos pelo tolhimento ou talvez, pelo entorpecimento das revelações de Loki, expostos às faces de si mesmos que nunca gostariam que fossem reveladas. Faces poéticas, musicistas, e propensos a imortalidade; deuses da fertilidade, do amor e da união; faces corajosas, e conhecedores dos destinos, agora, desnudos e vulneráveis pelas faces que rejeitavam, reprimiam e se negavam a admitir que existiam em si mesmos.

Até que Thor aparece em cena e com seu martelo Mjölnir promete privar Loki de falar, o ameaça arrancar-lhe a cabeça e manda-lo diretamente para Hel. Mas o deus da mentira, rapidamente decidi ir embora, pois sabia que o Deus do Trovão poderia verdadeiramente atacá- lo. Foge para a cachoeira Fránangr transformando- se em um salmão. A água é fluxo a favor da vida, mas uma queda d’água nos remete a força da natureza, que da junção de correntes de regatos e água branca em torvelinhos, ao encontro com a rocha perfeita e o precipício de rupturas de rochedos e de solo terroso, a água despenca em torrenciais do mais alto ao mais baixo até as profundezas abissais, nos incita a esquecer temporariamente das preocupações e admirar os grandes potencias da natureza e a beleza de uma catarata. Mas grande massa de água também nos esmagaria e nos traria morte ao invés da vida, que também nos convoca a conhecer os domínios sombrios em nós mesmos. Loki, transformado em animal marinho, transita facilmente entre águas torrentes, em turbulências da vida, que nos provoca da mais elevada situação a mais baixa situação, e fluiria normalmente, entre altos e baixos, se outros seres dentro de nós não fossem aquelas faces tiranas com máscara de bonzinhos, chamadas aqui de deuses, que capturam Loki. Skadi, deusa associada a caça, ao inverno e às montanhas, com suas alturas estupendas, se utiliza do seu poder de caça, em meios aos nossos invernos pessoais quando as paredes montanhosas nos nossos problemas se tornam ainda maiores, para prender o Loki, revelador das nossas imperfeições e que agora, transformado em salmão, fluiria melhor entre os altos e baixos das águas da vida, mas constantemente considerado o deus da trapaça, porque eventualmente, gostamos de contar muitas mentiras para nós mesmos.

Nesse interim, Loki é aprisionado com a cabeça debaixo de uma cobra, onde seu veneno poderia gotejar constantemente, para que pudesse “saborear” a dor de seu próprio “veneno”, em contrapartida, revelando ainda mais as faces sombrias dos deuses considerados como tendo apenas faces luminosas. A grande reviravolta desse conto é quando observamos que Loki é casado com Sigyn, a deusa associada a fidelidade e constância cuja etimologia do seu nome é “amiga da vitória”, e se predispõe a ajuda-lo, recolhendo em uma tigela, o veneno da cobra que deveria cair sobre Loki. Obviamente, a tigela se enche e Sigyn é obrigada a esvaziá-la. Nesses momentos, Loki, privado da liberdade, sofre com o veneno da cobra. O líquido tóxico cai sobre ele, causando-o tamanha dor, que toda a terra treme com seus gritos de sofrimento. No conto nórdico, é assim que são gerados os terremotos. Mas são eventuais terremotos dentro de nós mesmos, em nossos invernos pessoais, que desconsidera toda a ajuda do nosso Loki interior.

O deus traiçoeiro, mas que todos os deuses amam, como se diz na própria mitologia de Lokasenna, é o agente revelador das nossas sombras. É o deus da trapaça, pois gostamos de contar mentiras para nós mesmos, escondendo prioritariamente de nós mesmos, que somos imperfeitos, que somos vulneráveis e que obviamente, não conseguimos manter a face do bonzinho por muito tempo, se não aprendermos a olhar para nossas próprias faces sombrias, aprender com elas, e extrair o melhor tesouro delas, como já dissemos.

Só assim crescemos verdadeiramente, entre o bem e o mal em nós mesmos. Não mais forçando aquela positividade tóxica, como o veneno da cobra que nos fere e eventualmente se torna um terremoto devastador dentro de nós. Não à toa Loki é casado com a amiga da vitória. Pois só nos revelando inteiramente, no bem e no mal, também poderemos, casar com a amiga da vitória. Em nós!

Na série, por fim, vemos um Loki, obviamente divido entre o bem o mal, como sempre foi, sempre é, e sempre será, mas que no fundo todos os outros deuses o amam, pois sabem que Loki é o agente do caos aparente, mas que significa transformação. Loki muitas vezes, em nós, é necessário. É o toque de caos necessário para que se possa haver evolução. E em várias situações, Loki mostra seu lado maléfico para causas boas, geralmente contra sua intenção original. Não à toa também, conhecemos no seriado, várias faces de Loki, e até um jacaré aparece.  Mas na mitologia nórdica sua criatividade é utilizada por outros deuses para lidar com situações sem esperança.

Loki, Loki na variante criança, Loki jacaré e o Loki mais velho, se unem para sobreviver em meio ao caos. São obliterados para o vazio, convivem naturalmente com o caos e como eles mesmos enfatizam: “Os Lokis sobrevivem.”

Loki criança, lhe presenteia com uma adaga, que também simboliza o corte, a divisão, os lados opostos da mesma coisa repartida, mas principalmente simboliza a arma do traiçoeiro, daquele que ataca pelas costas, paradoxalmente daquele que fere para curar, o punhal da dor que podemos considerar traiçoeira, mas que nos impulsiona a crescer.

Traição, sobrevivência, mentira em nós. Alguns toques de caos para que se possa haver evolução.

            Abraham Harold Maslow foi um psicólogo americano, conhecido pela proposta da ‘Hierarquia de necessidades de Maslow’, ou como normalmente a conhecemos – a pirâmide de Maslow. Que basicamente consiste em uma demonstração em forma de uma pirâmide que explica nossas necessidades básicas em que, na base dessa pirâmide se encontram nossas necessidades primordiais como fome, sede, sono, saúde, abrigo, etc. E para resumir, no topo dessa pirâmide se encontram nossas realizações pessoais, aquele estágio da nossa vida em que tudo parece fluir e que podemos não mais apenas, nos concentrar em nossas necessidades mais básicas.

            Acontece que segundo as pesquisas do próprio Maslow, apenas 1% dos pesquisados norte-americanos, conseguiram alcançar o topo da pirâmide e se dedicarem efetivamente em realizações pessoais. E que, segundo a contribuição de Sigmund Freud para o mundo da psicologia, o comportamento humano tem como seu principal pilar tentar evitar a dor. E o que curiosamente, nos liga à própria sobrevivência, pois, como nem sempre, temos as condições sociais de conseguir suprir todas as necessidades básicas, ficamos excessivamente concentrados na nossa sobrevivência.

            Loki nessa situação é o articulador da sobrevivência. É o agente que nos convida a entender os nossos altos e baixos, as nossas sombras e luzes. É o deus traiçoeiro que nos ajuda a não mais contar mentiras para nós mesmos. É o que se utiliza da sobrevivência para nos desafiar a transcender a dor e a crescer com ela.

            Inspirados por Loki, não necessariamente precisamos ficar presos apenas às nossas necessidades básicas, mas podemos transitar por outras potencialidades que nos levariam ao topo da pirâmide, e aos picos montanhosos onde nascem as águas fluidas, transitando nas elevações das nossas realizações pessoais, mas predispostos a entender nossas profundezas abissais que, naturalmente são assustadoras, e supostamente traiçoeiras, como o deus da mentira. Não obstante, mais assustador ainda seria deixar que deuses em nós contenham o nosso encontro com tesouros escondidos nos recantos inexplorados de nós mesmos. Tóxico como o veneno da cobra em Loki seria também nos enchermos de ilusões da ostentação, da positividade apenas na aparência. Em outro aspecto, tentando fugir da dor, agimos como os deuses que querem evitar que se revelem suas dores e vulnerabilidades, e por isso mesmo, tentam esconder as revelações de Loki.

            Termino, enfim, o texto como comecei. “Você não nasceu para ser rei, Loki. Você nasceu para causar dor, sofrimento e morte. É assim que é, é assim que foi, é assim que vai ser. Tudo para que outros possam atingir a melhor versão de si mesmo.” – disse Mobius a Loki. Mas acrescento: ‘Esse é o Glorioso Propósito controverso de Loki. Em Nós! Para que possamos atingir a melhor versão de nós mesmos!’

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Fábio Henrique Marques
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