Sermos transportados para o século V ou VI, não nos prendendo a lenda de Artur, mas convidados a conhecer uma história que nos remete ao exercício de uma construção mental de uma Britânia (atual Inglaterra) difícil, recém “abandonada” por Roma e de uma época considerada como a Idade das Trevas, percebemos que o autor Bernard Cornwell faz um trabalho incrível misturando romance e fatos históricos, embora falaremos apenas do seu primeiro livro da Trilogia “ As Crônicas de Artur – O Rei do Inverno”.

           O autor nos leva a cultura da Britânia, no sudoeste da atual Inglaterra, da Bretanha ao noroeste da atual França, ou Powys, atual País de Gales ou a antiga Irlanda, todos remanescentes da cultura celta, assim como a conhecer os invasores germânicos anglo-saxões, na época chamados apenas de saxões. E a uma época marcada com fortes rupturas culturais, guerras civis entre os próprios bretões, a vinda do cristianismo que Roma institui, que de certa forma, se relaciona, em partes, pacificamente com o druidismo, que por sua vez, esse druidismo, embora em declínio, foi uma religião muito ligada à natureza, à imortalidade da alma e à comunicação com os mortos.

           Esse autor incrível nos convida também ao exercício da imaginação, em que poderíamos projetar um Artur naquela época, com costumes e ações condizentes com o meio em que vivia, mas com a nobreza de um homem bom, criada posteriormente por aquela literatura fantástica que conhecemos mais recentemente na história da humanidade – com magias, dragões, monstros e donzelas. Nos incita ao exercício de observar que, se existiu o mago Merlin, ele seria como um druida da época, um conselheiro espiritual, não só dos pequenos reis feudais, mas também temido por todos daquele povo, seja por sua autoridade espiritual, seja pela superstição muito inserida na cultura. Um druida era também muito ligado àquilo que a natureza poderia lhe prover, ou para criar ilusão e aumentar seu prestígio espiritual, ou para realmente responder à vontade dos deuses pagãos. O autor nos leva a frente das batalhas da época, e me impressionou muito a ideia de que, embora agora me pareça obvio demais, as linhas de frente inimigas, de escudo e lanças, numa guerra, ficavam por horas se analisando e não era fácil para o líder de guerra convencer seus soldados, a enfrentar a horda de escudos e lanças do inimigo a frente.

           Embora vemos em Gildas, um escritor clérigo cristão celta do século VI, a descrição da batalha vencida dos bretões sobre os saxões, não cita Arthur em nenhum momento, vemos em Nennius, um historiador do século VIII,  que compilou a história dos britânicos nos últimos anos, muito embora 200 anos à frente da época da suposta existência de Artur, o cita com mais propriedade e de modo mais significativo. O chama de Dux Bellorum, ou Líder das Batalhas, mas nunca como rei. A partir da visão do narrador da história, um saxão guerreiro de Artur – Derfel Cadarn (se pronuncia Dervel), posso descrevê-lo como alguém que, muito embora tinha um lado guerreiro habilidoso, calculista, e que sempre havia firmeza, confiança e dureza nas suas ações no campo de batalha, vemos também, nas decisões políticas, às vezes impaciente,  ansioso e com uma decisão de ferro. Por outro lado, podemos ver uma característica muito interessante que me chamou a atenção: ele tinha, como descrito no livro, um interesse genuíno pelas pessoas e óbvia benevolência. Seu rosto refletia uma verdadeira gentileza e todos naturalmente confiavam em Artur à primeira vista. E como também havia sempre em seu olhar um humor maroto, estar com Artur entusiasmavam as pessoas e ainda as deixavam sorridentes a ponto de que, quando saía do local, a monotonia retornava. Outro ponto essencial em sua personalidade é sua nobreza, que refletia seu idealismo utópico para a época, muito embora, movido por uma louca e infantil paixão a Guinevere, promoveu muita morte a seus contemporâneos.

           Já em Merlin, vemos o que parece ser o oposto. Malicioso, enganador, de presença perturbadora, apequenava e denegria todo mundo, adorava o fingimento, os disfarces e se fazia, não poucas vezes, de frágil e velho, quando na verdade, apesar de idade avançada, tinha a agilidade de um jovem. Aparentemente amava poucas pessoas, Artur e Derfel pareciam ser duas delas. Naquele cenário, mais violento que hoje, os pouquíssimos que não eram guerreiros, poderiam se tornar também, como Merlin, conselheiros espirituais dos reis feudais da época e também, para serem temidos pelo povo, contavam com a prática constante de evocar praga àqueles que lhe eram contrários, criando ilusões através da enganação e daquilo que a natureza tinha a oferecer, e não magias como na fantasia. Assim se beneficiariam do prestigio e da autoridade espiritual. O mais confiante de suas práticas, e também o mais confiante dos druidas, o que sabia fingir mais, o malicioso e que, no caso de Merlin, não que ele não tinha sabedoria, mas era mais importante fingir uma sabedoria extrema, do que realmente exaltar uma humildade. Num exercício imaginativo, numa época violenta como aquela, a atitude de Merlin era como um instinto de sobrevivência, mas o druida ainda se divertia com isso e fazia quase que intuitivamente, estava totalmente inserido no seu papel e na realidade da época. Era verdadeiro mago e para ele o destino era inexorável.

           Mas ao longo da história vemos que suas intensões são as melhores possíveis. Parecia saber ler a parte secreta do coração de todos e era absolutamente sábio. Lutava secretamente pelos bretões, por aqueles que sabia que lutavam pelo coletivo, e pelos treze tesouros sagrados da Britânia que provavelmente restauraria o país e também os libertaria das invasões saxônicas.

           Embora o autor não diga explicitamente, sua habilidade de criar várias camadas de personalidade para seus personagens, pode nos incitar a criar um convite de reflexão interior e podemos sim, buscar o que há de melhor em nós. Assim como Artur, por exemplo, podemos nos inspirar à nobreza de coração, a criar em nós o interesse genuíno para com as outras pessoas, mas podemos também, como fruto da imaturidade, fruto de paixões sem medidas, sem reflexão, trazer infortúnios a nós mesmos, assim como Artur trouxe a morte a vários de seus amigos e guerreiros, por conta da paixão que nutria a Guinevere. Pois paixão é diferente de amor, um encontra prisão e solicita benefícios apenas a si próprio; o outro liberta, e é genuíno coração que trabalha sempre para servir. Mas como uma pessoa integra, Artur soube reconhecer seu erro e tentou, de todas as formas, consertá-lo voltando a servir seu povo. E integridade é também, saber carregar a nós mesmos com dignidade, mesmo depois de termos cometidos equívocos importunos.

           Merlin, por sua vez, exala confiança, sabe exatamente o que quer e sua sabedoria o faz agir para que seus objetivos sejam concluídos. É claro que, se sua palavra muitas vezes pareça agressiva e indiferente, nada mais é, para cada vez mais, produzir o efeito de enigmático e como já observamos, para àquele que não é guerreiro e pela posição social que os druidas exerciam, a inteligência é a sua principal arma, e Merlin sabia usá-la com maestria. Mas há uma linha muito tênue aí para que a arrogância não prevaleça.

           Embora Artur não aja com generosidade excessiva, nem Merlin aja com confiança excessiva, que poderia se tornar arrogância fora do contexto de necessidades à sobrevivência da época, o ensino da “justa medida” de Aristóteles nos convida ao exercício. Nem excesso nem escassez a nossa generosidade. E também, nem excesso nem escassez a nossa confiança, mas discernimento para sabermos construir essas virtudes.

           Somos complexos e fantásticos, e podemos ser íntegros e completos dentro do nosso campo de imperfeições, desde que saibamos olhar para dentro de nós com a sabedoria desses heróis que tanto nos inspiram, e que saibamos reconhecer também que temos múltiplas camadas de virtudes a serem exploradas.

#ascronicasdeartur #bernardcornwell #oreidoinverno #oheroiqueexisteemnos# cafecomzumbi #desenvolvimentopessoal #livro #heroi #generosidade #sabedoria #historia

VEJA NOSSA ANÁLISE EM VÍDEO CLICANDO ABAIXO:

O atributo alt desta imagem está vazio. O nome do arquivo é Botão-HN-Video-124x42px-Oficial.png

OUÇA NOSSO PODCAST NO SPOTIFY, ITUNES, NO SEU PLAYER PREFERIDO OU FAÇA O DOWNLOAD ABAIXO:

Fábio Henrique Marques
Gostou? Que tal compartilhar